Trechos da entrevista concedida ao Portal Pró-Menino: “Educador é aquele que aprende”
E o que mais te desagrada na educação formal?
Tião – A educação formal não cumpre sua missão, pois a escola não educa, só escolariza. E outro ponto é que, atualmente, ela não forma pessoas éticas, justas, dignas, solidárias, mas está comprometida como um aparelho ideológico do mercado que, como falei, é volátil, e está formando pessoas para o mercado de trabalho, para serem competitivos, eficientes, e ganharem o máximo no mínimo de tempo, não importa se eticamente ou não. E o pior é que nem isso a escola brasileira está fazendo bem. Basta vermos os últimos resultados do exame do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), que mede a avaliação de estudantes de 15 anos nos campos da leitura, escrita, matemática e ciências. Os alunos brasileiros foram uma calamidade, e ficaram nos últimos lugares, ou seja, essa escola não consegue nem preparar gente para esse mercado, muito menos pessoas dignas e decentes. E quando falo escola, não é apenas a escolinha lá do interior, de ensino básico ou pública, mas também a universidade. Por exemplo, o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto teve todas as escolas, fez MBA, pós-graduação, etc, mas esse individuo, com certeza, nunca teve uma aula de ética e não sabe o que é isso, caso contrário, não faria tanta roubalheira. Para um caso desses, que é um desastre, a universidade onde ele estudou deveria tomar-lhe o diploma, porque ele rompeu com o juramento. Era o mínimo que deveria ser feito a bem da moralização do ensino superior brasileiro. E a universidade deveria pedir desculpas à sociedade por ter formado e diplomado pessoas como o Dr. Lalau. Da mesma forma que ela deveria ser cumprimentada pelos bons exemplos de cidadãos formados. Para mim, nossa escola deve nos preparar para a construção de uma nação, de um país, e não apenas de mão-de-obra. Se queremos um país ético, justo, com menos corrupção, solidário, como podemos ter uma escola que prepara pessoas só para o mercado, em que vale tudo e o mais esperto leva todas as glórias? Acredito que esse modelo é um grande equívoco e que estamos em um momento crucial, em que é necessário rever tais parâmetros e paradigmas para construirmos o Brasil que queremos e necessitamos. Se temos uma escola medíocre, de segunda categoria, o país também continuará assim, um país de segunda, então precisamos pensar qual escola queremos ter. Eu acho que podemos vir-a-ser os campeões mundiais de educação e construir escolas tão boas e eficientes quanto as nossas seleções e equipes esportivas.
Pró-Menino – Então como deveria ser a formação de um educador?
Tião – Ser educado é um dos fins da nossa vida, já que viemos ao mundo e temos pouco tempo aqui (não há segundo turno na vida, é turno corrido). Nós somos inquilinos (não proprietários do mundo) e estamos de passagem e para quê? – para ser educados, livres, felizes e ter saúde, penso eu. Por isso acredito que a educação é fim (e não meio) e o educador é aquele que cria as condições para as pessoas aprenderem tudo e todo o tempo. Educador é aquele que possibilita às pessoas a aprendizagem para a realização plena de todo potencial humano que trazemos e construimos. Então a educação deve preparar para que cada um seja um grande aprendiz com os outros, com o todo. Podemos definir educação como quisermos, mas ela só acontece no plural. Não existe educação no singular, pois para que haja educação, é necessário no mínimo duas pessoas. E educação não é aquilo que eu ou o outro sabemos, mas o que nós conseguimos trocar e aprender juntos, é na soma (1 + 1 = 3) que se aprende junto com o outro e se produz o milagre da educação. Por isso, penso que a formação do educador deveria preparar o indivíduo para ser um aprendiz permanente, com uma capacidade de ouvir e de aprender de uma forma generosa e intensa. Quando a gente consegue despertar nas pessoas que todos nós temos esse potencial de educador, percebemos que é possível fazer isso em escala maior. Aprendi lá em Moçambique que “para educar uma criança, é necessário toda uma aldeia”. Então uma cidade deve ser sempre uma cidade educativa, uma grande aldeia. O importante é trabalhar esse potencial e disponibilizá-lo como possibilidade concreta para criar uma vida melhor para todos.
Pró-Menino – Como isso pode ser feito?
Tião – Pela nossa experiência, construímos a “pedagogia da roda” para que todo mundo pudesse se ver, e percebemos que na roda, com as pessoas confortavelmente instaladas, não tem ninguém que manda. Numa roda as informações circulam de um lado para o outro e o que comanda é o conteúdo, são os desejos, os conhecimentos e os interesses de todos que estão na roda. Quem está sentado na roda é educador, e não importa se é criança ou adulto. Começamos a perguntar o que iríamos estudar e aprender juntos, e como cada um tem um desejo aparecia uma listagem com 30 ou 40 assuntos. Em um primeiro momento, começamos a usar a lógica econômica, selecionando o que é mais importante e fazendo uma eleição do tipo “maioria vence“ e decide estudar. Isso é bacana como prática de exercício da democracia. Mas, no aspecto educacional, é uma lástima porque se um determinado tema proposto por uma criança qualquer fosse vetado e ele “perdesse” no primeiro, segundo e terceiro momentos, na quarta vez que tivesse nova a eleição ele nem entraria, pois já teria se excluído ou pensaria: “Poxa, vou embora porque nunca ganho. O que me interessa nunca interessa ao grupo.” E uma escola que exclui, não educa!
Pró-Menino – E então o que fizeram?
Tião – Com isso, percebemos que se continuássemos daquele jeito, perderíamos os meninos e, para não perder ninguém, mudamos o jeito de fazer, e a eleição ficou proibida. A eleição, tipo a maioria vence, é boa como exercício de vida democrática, mas não como processo educacional porque exclui pessoas. O que temos que aprender é construir consensos. E o que isso significa? Se temos uma pauta com 40 assuntos, ótimo, vamos organizá-los como prioridades… O que é mais importante para se estudar hoje, amanhã e assim por diante, até trabalhar com todos os assuntos. Então percebemos que a participação era de muito mais qualidade, todas as opiniões e propostas eram valorizadas porque não queríamos perder nada e queríamos estudar tudo. Também percebemos que, ao fazer novos consensos, os assuntos adquiriam mais qualidade e o envolvimento era muito maior nas rodas.
“Educação só acontece no plural. Não existe no singular, pois para que haja educação, é necessário no mínimo duas pessoas”
Pró-Menino – Deu certo?
Tião – Sim. Isso não era problema nem dificuldade. Pelo contrário, era uma solução. Não se faz isso na escola porque é mais cômodo para quem ensina achar que todo mundo precisa aprender a mesma coisa, do mesmo jeito e no mesmo tempo, o que é um equivoco, de um autoritarismo tremendo. Hoje, as crianças têm muita clareza disso porque alguém decide o que elas precisam aprender, que existe uma autoridade, mas o que elas precisam aprender efetivamente é saber respeitar, socializar, ter tolerância, solidariedade e criar relações de justiça. Tenho citado um caso que aconteceu comigo recentemente, quando uma aluna de nove anos me disse que nas férias havia esquecido o que era “hectômetro” e estava preocupada se este “assunto” caísse na prova. Disse-lhe que ela (nem mingúem) precisava saber isso e que nem cairia na prova. Perguntei se ela sabia o que era centímetro, metro e quilômetro, e ela respondeu que sim. Então eu disse: “Minha filha, você está pronta para andar pra baixo e pra cima, medir as coisas, vai viver a vida inteira e ninguém vai te pedir para medir ou te mostrar nada em hectômetro. Isso só interessa para a pós-graduação, no doutoramento de matemática, física, sei lá…”. Passado alguns dias, ela voltou. A questão caíra na prova e ela perdeu nota. Imagine quanto desperdício de tempo e de talento por causa de inutilidade… As crianças têm que aprender brincando, aprender a serem justas e solidárias. Esses temas devem ser deixados para a época certa, no ritmo, no tempo e no momento necessários para a vida das crianças. Então essa é a grande questão: se nós quisermos realmente aprender, temos que fazer o exercício de humildade e não pensar que nosso conhecimento de adulto, ou professor de escola são os únicos e os únicos verdadeiros. Mas, infelizmente, reafirmo que o nó da questão é que a escola teima em ser o aparelho ideológico do mercado. Atualmente, muitas famílias, principalmente da classe média, colocam o filho em determinada escola infantil ou pré-escolar porque pensam que a escola possa preparar a criança para o vestibular, desde pequeno. Aliás, existe até “vestibulinho” para maternal e pré-escola. Ou seja, é uma escola que instrumentaliza e treina o menino, desde cedo, para passar numa prova, e não importa se ele vai ser feliz, ser boa gente ou ético. Depois de passar, ele vai pegar um diploma para ter um emprego, ganhar dinheiro, ficar rico e poderoso. Se, futuramente, ele cair nas operações da Polícia Federal por roubalheira, ninguém estará preocupado com a sua formação. Percebam o seguinte: a maioria das pessoas acusadas de crimes contra o patrimônio público, nos últimos anos, têm um vasto currículo escolar. A maioria tem curso superior! Portanto, temos um problema, já que essa escola não formou cidadãos. Se a gente começa a trabalhar com as crianças lá na base, não é tempo perdido, mas sim um investimento, e a escola pode fazer isso nos quatro anos de ensino básico. Os estudantes precisam sair de lá aptos para aprender a viver bem e dignamente, dominando os códigos de leitura, de escrita, de comunicação e de bem-viver. E há assuntos que só serão vistos lá no segundo ou terceiro grau, ou quando ele quiser estudar, pois na vida é possível se interessar e aprender tudo e o tempo todo e de todas as maneiras, e não temos só a escola o tempo inteiro para nos ensinar.
Pró-Menino – Pela sua metodologia, nos exemplos que o senhor citou da pedagogia da roda e da conversa com a menina sobre o hectômetro, é necessário estar sempre atento às demandas dos alunos. O senhor acredita que o educador é um pouco como um psicólogo?
Tião – Não sei se o educador deve ser um pouco psicólogo. Ele precisa ser um aprendiz permanente e bom ouvinte, ele precisa aprender a transformar os saberes, fazeres e quereres das crianças e dos jovens em instrumentos de aprendizagem para todos. Então eu falo que é como usar as tecnologias da informação e da comunicação (os TICs) para transformá-las em conhecimento, em tecnologias de aprendizagem e de convivência (os TACs). É necessário esse exercício de ritmo, tempo e pulsação no processo de aprendizagem. O educador é um construtor de pedagogias próprias. E deve ser verdadeiro. Não adianta a gente querer que ele saiba ou tenha a resposta para tudo, mas ele precisa ser uma pessoa curiosa, instigante, que queira aprender junto, que seja curiosa e pesquise todo dia. E outro ponto que nossos professores ainda não descobriram, é que esta é a única categoria profissional que tem o privilégio e a honra de estar diante de seu “cliente”, que são seus alunos, todos os dias. Isso não acontece com o psicólogo, nem com o médico, o engenheiro, o advogado, o padre ou o bancário, pois eles encontram seus clientes de vez em quando, ao ir ao banco, à igreja, ao hospital, etc. Já o professor está diariamente com o aluno, ou seja, se ele quiser, pode rever e passar o mundo a limpo todos os dias. Isso é fundamental porque se ele tiver esse jeito de olhar e a vontade de fazer, ele pode fazer uma transformação fantástica. Por outro lado, se ele acredita que os meninos passam quatro anos para aprender sempre a mesma coisa, com repetição e perda de tempo, aí acaba criando um lugar que fica chato para ir, ficar e conviver. Por isso sempre coloco um grande desafio, sobre qual seria a escola ideal: é aquela em que os alunos, professores e funcionários queiram ter aulas aos sábados, domingos e feriados, por exemplo. O outro lado, ao contrário, que é só falar de um feriado à vista que todos ficam felizes. Muitos professores pensam assim e dão graças a Deus quando ficam três dias ou uma semana sem ver aqueles “capetinhas”. E do outro lado, com os meninos, acontece a mesma coisa, pois eles falam: “Oba, vou ficar sem ver aquela jararaca!” Ou seja, temos um problema de relação, enquanto o professor fica copiando coisas em que não acredita na lousa, mas porque alguém mandou fazer, e os alunos obrigados a copiar aquilo que não faz sentido na vida deles. Então um finge que ensina, o outro finge que aprende, a escola finge que existe e o Estado finge que paga, criando essa relação de mútuos fingimentos. E as pessoas imaginam que está tudo certo, mas depois estouram as estatísticas de violência, criminalidade, e alguém grita que o motivo é a falta de investimento em educação…
“Para educar uma criança, é necessária toda uma aldeia”
Sebastião Rocha, mais conhecido como Tião Rocha, é um educador, antropólogo e folclorista brasileiro. Tião Rocha é autor de obras de desenvolvimento cultural e comunitário, além de membro de várias organizações de fomento a iniciativas na área
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